Carl Gustav Jung |
Assistimos desde o
século XX a um grande acúmulo de conhecimento físico e tecnológico. Apesar dos
bons frutos desse desenvolvimento científico, percebemos em paralelo uma
fragmentação e um isolamento cada vez mais fortes do ser humano na relação
consigo mesmo e com o mundo em que se encontra inserido. Como contribuir para a integração de partes da personalidade
que normalmente são excluídas ao longo do processo cultural e educacional, de
modo a resgatar aspectos fragmentados do psiquismo no sujeito contemporâneo?
Sabemos que a arte tem grande valor terapêutico, e
a arteterapia, por sua vez, é uma disciplina baseada na concepção fundamental
de que todo indivíduo tem uma capacidade inata para expressar seus conflitos
interiores em formas e imagens visuais, auditivas, táteis, e poéticas, entre
outras. Trata-se de uma modalidade de psicoterapia com recursos expressivos que
estimula diferentes possibilidades de expressão ao longo do processo
terapêutico para que o paciente possa estabelecer uma ponte entre seu mundo
interno (subjetivo) e o mundo que o rodeia (objetivo). Isso porque a linguagem
poética e expressiva permite ao indivíduo redescobrir a si-mesmo, e com tal descoberta,
renovar-se na relação com o mundo.
O arteterapeuta pode trabalhar com diversos
materiais das artes plásticas como por exemplo, papel, lápis, tintas, argila,
carvão, e oferecer conhecimentos técnicos básicos para que o paciente possa
lidar com esses materiais. Não é exigido do paciente talento artístico, pois o
objetivo não é ensinar artes, no sentido usual, tampouco é emitido qualquer
juízo crítico ou avaliação estética dos trabalhos criados pelo paciente.
Qualquer pessoa pode tirar proveito desse processo: crianças, adolescentes,
adultos, idosos, doentes mentais, dependentes químicos ou deficientes. Todos
podem se beneficiar da possibilidade de se expressar de um modo livre, natural
e intuitivo, exercendo o potencial humano da criatividade.
O paciente é levado pelo arteterapeuta a se soltar
da maneira mais espontânea possível, rabiscando, colorindo, desenhando,
modelando, enfim, criando imagens, poesia, música, de acordo com seus próprios
recursos pessoais. Será por meio dessas atividades que poderá expressar seus
sentimentos, pensamentos, emoções, atitudes, descobrindo aspectos seus que
antes não estavam claros, reconhecendo-se no que saiu de si, e na materialidade
dos elementos concretos colocados à sua disposição.
A arteterapia contribui, também, para a expressão
verbal na psicoterapia. Comumente, o discurso dos pacientes no início do
processo terapêutico encontra-se bloqueado para se referir às suas sensações,
sentimentos, idéias e fantasias. Pelo uso da expressão criativa, o paciente
começa a desenvolver a verbalização ao perceber o conteúdo afetivo associado às
produções realizadas nas sessões terapêuticas. E desse modo, ao representar em
imagens suas experiências subjetivas, seu discurso frequentemente se torna mais
fluído, já que ele pode se expressar verbalmente com mais consciência sobre seu
mundo psíquico.
A atividade expressiva, aliada ao trabalho de
compreensão intelectual e emocional, facilita o encontro com as várias facetas
da personalidade como um todo. Ao dar livre curso às imagens internas, o ser
humano, ao mesmo tempo que as modela, transforma a si mesmo e ao mundo. (Texto
baseado no livro "A arte cura?", 1995. Organizadora: Maria Margarida
Carvalho).
Nos vários textos
dedicados por C.G. Jung ao tema "Psicoterapia", especialmente no
volume 16 das obras completas, o autor ressalta a importância de deixar o
paciente a sós, por assim dizer, com seu inconsciente, a fim de evitar uma
intensificação da dependência em relação ao psicoterapeuta.
Para tanto, Jung enfatiza que o paciente deve ser
estimulado a alcançar uma certa autonomia para lidar com as imagens do próprio
inconsciente. Por isso a psicoterapia é proposta como um campo de
experimentação, em que o paciente deve adotaruma postura ética
frente às imagens do inconsciente, estabelecendo com elas um diálogo simétrico,
de base fenomenológica, que se preocupa mais em perguntar "o que isso quer
comigo" do que "o que isso quer dizer?".
Desse modo Jung propunha a expressão simbólica e o
envolvimento ativo com a psique, inclusive sugerindo a seus pacientes que
desenhassem, pintassem ou modelassem seus sonhos e outras fantasias. Nesse paradigma clínico, evidencia-se uma tentativa de
des-centralizar o ego e promover uma experiência menos racional no contato com
as figuras do inconsciente.
Quanto ao método psicoterapêutico da psicologia
analítica, Jung retomou o sentido original do termo "dialética" para
propor um "diálogo ou discussão
entre duas pessoas, que ocupam posições simétricas no setting", sendo que dessa
relação pode surgir um terceiro, ou síntese, que seria algo novo e diferente do
que apenas a soma das partes. Desse modo, pode-se dizer que a psicoterapia
junguiana se dá como "uma interação de
sistemas psíquicos", modulada por múltiplas relações
transferenciais e contratransferenciais.
Em relação ao terapeuta, Jung enfatiza uma postura
especulativa, não-conceitual e não-interpretativa, pois supõe que o método diz
respeito a um "confronto de averiguações mútuas", em que o terapeuta
deve colocar em suspenso suas atribuições intelectuais e ativar, por assim
dizer, o arquétipo curador no paciente. Por isso, a
psicoterapia é sustentada numa perspectiva que leve o paciente a experienciar
seus afetos e emoções, mais do que a nomeá-los ou interpretá-los racionalmente.
O terapeuta, então,
se coloca numa postura de facilitador ou guia, que acompanha as sementes ou
"germes criativos" da psique do paciente, ajudando-os a se desenvolverem, em oposição a uma postura médica
tecnicista que visa apenas tratar e curar doenças. A própria noção de cura e
doença é particular em sua psicologia, pois Jung vê na patologia uma tentativa
inconsciente da psique se restabelecer, visto sua concepção teleológica ou
finalista, que considera que o self tende a compensar ou complementar a atitude
unilateral do ego.
Em seu livro de memórias, Jung (1963/1975) dedica
um capítulo ao que chamou de "Confronto com o
Inconsciente", onde narra algumas experiências vividas no período
subseqüente à dissidência do movimento psicanalítico. Dentre essas experiências
é digna de nota a descrição da "Imaginação Ativa",
uma técnica que permitia a ativação de um jogo no campo da fantasia para que se
desse um diálogo imaginativo com as figuras de seu inconsciente.
Jung reconhecia, com a
técnica da imaginação ativa, que a abordagem às figuras da fantasia
inconsciente devia ser orientada menos por seu significado conceitual e mais
por seu aspecto relacional. Isto porque tais figuras imaginais não
deveriam ser tomadas como representações de aspectos subjetivos da
personalidade egóica, e sim como manifestações objetivas da psique
inconsciente. A partir dessas experiências, ele adotou uma perspectiva
fenomenológica em relação aos sonhos e a toda e qualquer produção inconsciente,
afirmando que tais imagens não escondem, mas
revelam, não representam, mas apresentam-se como alteridades à consciência.
Possivelmente, nenhuma outra clínica
psicoterapêutica lance mão (literalmente) de tantos e tão diversificados
recursos expressivos quanto a clínica junguiana. O que pode ser entendido como
reflexo dessas considerações iniciais do período de auto-análise de Jung,
estabelecidas por sua vez a partir de sua necessidade de dar às fantasias
inconscientes uma expressão concreta por meio de pinturas e da modelagem (atualmente,
este material pode ser consultado no Livro Vermelho, JUNG, 2010). Também por
esta razão, poucas teorias se prestam tão adequada e profundamente a
fundamentar a prática arteterapeutica quanto a psicologia analítica.
Santina Rodrigues
(santinarodrigues@terra.com.br). Professora do IJEP
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Fonte: http://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=89&ref=arteterapia-um-encontro-com-a-materialidade-das-imagens-e-dos-objetos-na-pratica-cl%EDnica