terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE ARTE E LOUCURA (Autor: Alan Villela Barroso)

RESUMO:O presente relato de experiência refere-se a um trabalho de imersão em um Centro de Atenção Psicossocial I – CAPS I, precisamente com pacientes da Saúde Mental da cidade de Ouro Preto, MG. Relata-se o processo artístico nas oficinas terapêuticas, assim como são realizadas as medicações com os pacientes. Analisa-se a ausência de afetividade social e a falta de oportunidades de trabalhos para estes pacientes.

1. CONTEXTUALIZANDOO seguinte relato refere-se a minha experiência como estagiário do curso de licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, realizado no Centro de Atenção Psicossocial I – CAPS I, na cidade de Ouro Preto – MG, no decorrer do ano de 2010. Este relato foi apresentado como parte do meu trabalho de conclusão de curso em dezembro de 2011.
Situado em um grande casarão, não adequadamente conservado, o CAPS I oferece permanência dia  para portadores de transtornos mentais, com oficinas terapêuticas, consultas com médicos e medicações feitas no próprio local e remédios que são oferecidos para que o paciente possa se medicar no período da noite. Para começar a descrever o CAPS I vou ater-me aos detalhes que me foram significativos.
Avista-se o jardim da entrada com algumas árvores e um portão branco modesto que range alto na hora de abrir, quase como se fosse um alarme, anunciando nossa chegada. Algumas bolas coloridas penduradas nos galhos das árvores, quem sabe dizendo-nos “bem vindos”? Talvez.     
Ao entrar pela primeira vez na recepção, me deparei com diversas pessoas, entrando e saindo, outras sentadas no sofá. Algumas pessoas me olhavam, outras não percebiam minha presença. Um sentimento de algo novo para descobrir e uma ansiedade que eu não sabia explicar. Logo depois, “bons dias”, vindo de todos os lados, sem saber se eram de funcionários ou de pacientes.   
Ficamos parados à espera de alguém surgir para nos receber. Então, fui capaz de observar alguns olhares diferentes dentro daquela sala de espera repleta de quadros pelas paredes, alguns sofás e uma recepção. Eram olhares vazios, distantes, quase inexistentes, e as cabeças baixas, calados, im-per-cep-tí-veis. Ainda bem que tem a saúde mental, se não nós íamos todos para o hospício , diz baixinho uma senhora sentada.   
Às 8h55min, aquele fluxo de pessoas aumentou. Um entra e sai ininterrupto. Era a hora do remédio. Logo, pequeninas multidões foram atrás de copos para engolirem os comprimidos. A água tá geladinha, Minhas pernas estão bambas, Vai tomar remédio não? Diziam os pacientes entre si, tomando seus remédios como se fossem receber a panacéia , ritualisticamente no mesmo horário.   
E os olhares desconfiados tornaram-se olhares curiosos e, cautelosamente, os pacientes adquiriram liberdade de se aproximarem. O que vocês estão fazendo? Estão anotando sobre a gente?, disse naturalmente C., 31 anos. E foi assim que fiz a minha primeira amizade dentro do CAPS I.   
C. tem um olhar muito fixo, tão distante que é difícil de enxergar. Um rosto quase sem expressão. Ela raramente sorri, mas quando o faz, é de uma forma tão gostosa que você ri junto com ela. Seus cabelos são raspados e ela possui uma lucidez que te faz questionar o conceito de lúcido. Mal sabíamos, era uma poetisa voraz e logo foi pedindo nosso caderno para inventar uma poesia, intitulada:
Uma Manhã Alegre
É de manhã e encontrei pessoas diferentes
Que nunca descuidam de seus parentes
Vieram na clínica fazer um trabalho
Têm muita gente que gosta de Elba Ramalho.
Fui à missa na Matriz da Igreja do Pilar
Onde todo o dia vou para rezar
E no lugar onde não pode se ousar
Os cachorros estão sempre a rosnar.
O sol aquece a cidade de Ouro Preto
Aqui têm gente a assar carne no espeto
Encontrei dois jovens estudantes
Que têm qualidades muito abundantes.
Eles são bonitos e muito inteligentes
E à aula não ficam ausentes.
A quantidade de pacientes que frequentam o CAPS I é incerto: existem pacientes que estão presentes e em tratamento durante anos, assim como pacientes que aparecem apenas uma vez e nunca mais retornam. Existem, ainda, aqueles que frequentam o serviço somente durante as crises e outros que vão para a consulta com o psiquiatra/psicólogo. A presença dos familiares é muito escassa. Geralmente, esse contato entre os familiares dos pacientes do CAPS I, dá-se apenas em datas comemorativas, principalmente no Natal.    
As oficinas terapêuticas são oferecidas por duas monitoras, que auxiliam os pacientes durante a sua realização. Dentro das oficinas, são produzidas pinturas, desenhos, bordados, etc. Os recursos para sua realização são escassos e a prefeitura de Ouro Preto não ajuda o CAPS I há seis anos para a compra de materiais básicos. Tudo é improvisado, reciclado e precário, o que não impede a livre promoção da criatividade dos pacientes.       
O que pude notar através de minhas conversas com os pacientes foi que todos eles sofreram alguma perda afetiva em sua vida, que está diretamente ligada ao núcleo familiar, o que os levou, consequentemente, a perda de sua razão: a morte do filho, da filha, dos pais, o marido preso, uma briga, trauma de infância, problemas familiares. Para o psicólogo Arnaldo Alves da Motta:
Diante de tantas dificuldades, achar uma possível causa para a doença muitas vezes pode se transformar em julgamento. Não é difícil detectar na dinâmica familiar inúmeros aspectos que contribuem efetivamente para a psicose (1997, p. 29).
Para mim, visivelmente, do que eles mais precisam nesse momento em suas vidas é de compreensão e apoio. Mas a grande questão é de quem? Visto que o lugar do “louco” na sociedade é, ainda hoje, no hospício, em serviços de assistência e instituições, longe do contato sócio afetivo, inclusive dos próprios familiares, o que vem a interferir em seu processo de recuperação, tendo em vista que “a família é o núcleo social básico e, como tal, é uma referência fundamental também para o paciente psicótico, o que justifica sua abordagem no percurso terapêutico.” (MOTTA, 1997, p. 29).      
As visitas são poucas, tanto por parte dos familiares dos pacientes, quanto da parte de pessoas da sociedade. Para a maioria dos pacientes, a família leva uma vida à parte do portador de transtorno mental e este, por sua vez, encontra-se à margem da sociedade, sem qualquer tipo de afetividade. Neste sentido, quando uma pessoa se depara com o que comumente é rotulado como “louco”, procura mais um afastamento do que uma aproximação, esta postura do “não louco” acarreta, na maioria das vezes, em um prejuízo no desenvolvimento pessoal-afetivo-social do paciente.      
O espaço destinado para as oficinas terapêuticas é agradável, arejado, com janelas abertas, tocando de fundo, às vezes, uma música antiga, ou sintonizado em alguma estação de rádio. É tudo muito livre para os pacientes. Existe o espaço para a pintura e o desenho, e também o espaço de costura, onde as senhoras mais velhas, concentradas com as suas agulhas, criam, incansavelmente, pequenos “fuxicos ”, costurando-os, como na mitologia grega, onde as Moiras  teciam o destino das pessoas na enorme tapeçaria.  
A seguir busco analisar e discutir as práticas pedagógicas e/ou terapêuticas articuladas por meio da arte, desenvolvidas por pacientes do CAPS I. Mais do que apenas analisar os produtos artísticos realizados pelos pacientes, o propósito aqui é procurar conhecer e compreender, em especifico, o cotidiano do CAPS I. Neste contexto, será foco de análise o trabalho desenvolvido pelos pacientes, conjuntamente com os funcionários, bem como, as relações estabelecidas entre pacientes e funcionários e pacientes-pacientes. 
Foram meses de cautelosa observação sobre o cotidiano do CAPS I, de seus funcionários e da forma como se desenvolve o trabalho dentro do serviço. Não sabia o que esperar do primeiro contato com os pacientes. O que poderia falar? Como deveria me dirigir a eles? Como eles reagiriam à minha presença? Ser indiferente e tentar não me envolver, ou me deixar encantar por suas particularidades?
   
2. A AFETIVIDADE E SUA AUSÊNCIAC. frequenta os Serviços de Saúde Mental desde os quinze anos e diz que preferia ir para uma escola onde teria condições de vestir roupas diferentes e deixar o seu cabelo crescer – sua percepção de normalidade? Ela gosta de sentar na rua, observar as pessoas e escrever poesias sobre o que observa. Em nosso primeiro encontro, C. me questionou:      
Aqui é uma clínica para depressivo, né? É que eu vejo muita televisão e eu tenho a cabeça ruim, aí eu acho que estou dentro de uma prisão [...] Vocês vão ficar muito tempo aqui? Tem gente que fica uns trinta minutos e vai embora.
Isso é algo muito comum dentro do CAPS I, segundo a psicoterapeuta. Quando uma pessoa diferente passa a frequentar o serviço, não permanece por muito tempo, o que afeta diretamente no comportamento dos pacientes .   
A mãe de C. faleceu quando a mesma possuía um ano e meio de idade. Aos quinze anos seu pai faleceu de câncer de pele. Após a morte do pai, passou a viver com os irmãos. C. diz que essa época foi muito dolorosa em sua vida e de como se sente um “problema” para os irmãos.     
Dona N. trabalhava como cozinheira. Sua filha mais nova faleceu em 1996. Após o ocorrido, ela parou de trabalhar e entrou em profunda depressão. Foi quando buscou ajuda no CAPS I. Ela possui outros dois filhos, sendo que um deles está preso desde os dezoito anos. N. diz ter uma relação muito complicada com o filho preso.         
Para Arnaldo Alves da Motta, não é somente o portador de distúrbio psicológico que necessita de cuidados, mas também seus familiares, que passam a sofrer pela condição do outro e, muitas vezes, não possuem conhecimento adequado sobre o que está acontecendo com o seu parente. Diz ele que:
Dentro da nossa prática, o que se evidencia é que os laços de sangue falam alto quando alguém precisa de ajuda, mas é preciso reconhecer que a família do psicótico também tem seus limites. Poder empatizar com o sofrimento de todos, oferecer continência e uma perspectiva comum é ganhar preciosos aliados na árdua tarefa do caminho terapêutico. Não nos esqueçamos de que, se o vínculo terapeuta-paciente deve ser forte para que possamos ter boas perspectivas para o tratamento, a família é a referência básica para o paciente (1997, p. 30).
Pude perceber, através de minha observação, que o vínculo estabelecido entre o terapeuta e o paciente necessita de comprometimento de ambas as partes. O paciente precisa reconhecer que carece de ajuda e deve estar apto a recebê-la. Da mesma forma, o terapeuta necessita estar constantemente ao lado do paciente, auxiliando-o em seu processo de recuperação. Por vezes, esse processo pode ser lento e conflituoso, para o paciente que deseja melhorar e para o terapeuta que busca ajudá-lo.
No meio à busca pela recuperação, acredito ser fundamental o acompanhamento por parte dos familiares no cotidiano do CAPS I. A compreensão e a afetividade contribuem efetivamente no tratamento dos pacientes, uma vez que este tipo de apoio colabora na sua predisposição em permanecer no CAPS I e receber o tratamento adequadamente.
3. A FALTA DE OPORTUNIDADES: AUSÊNCIA DO TRABALHO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Observei que, muitas vezes, os pacientes do CAPS I não encontram respaldo social, além de serem alijados em relação ao mercado de trabalho, o que pode ser observado no seguinte relato:
Eu tenho dois irmãos e cuido da minha mãe. Sou doente mental, porém mais lúcida que meus dois irmãos, que tem a saúde perfeita, mas o vício do álcool. O que mais me deixa triste nesse mundo é não conseguir um emprego por causa da minha condição. 
Em conversa com a monitora de oficinas terapêuticas, a mesma me disse que este relato é comum entre todos os pacientes do CAPS I. A grande maioria já trabalhou normalmente em algum momento de sua vida, mas atualmente, nenhum paciente presente possui emprego.     
Devemos considerar que neste caso, temos que ter uma análise para além das “imposições” que o sistema capitalista inculcou como “destino” natural de todos, ou seja: ser produtivo significa ser “normal” e integrado a ordem econômica vigente. Neste sentido, produtivo significa ter capacidade de produzir bens de consumo e, consequentemente, ser um consumidor. Aquele que não está inserido no mercado de trabalho pode estar também fora do mercado consumidor.       
Em oposição a essa visão “simplista” acredito que o trabalho é necessário, não somente para a produção de mercadoria, obtenção e circulação de capital; entendo que o trabalho é uma possibilidade de inserção social, respeito da coletividade a que pertence e a promoção da melhoria da auto-estima. De acordo com Michel Foucault, pensador e epistemólogo francês, “[...] a obrigação do trabalho assume um sentido: é simultaneamente um exercício ético e garantia moral.” (1978, p. 85).       
O homem trabalha para si e para o coletivo, o que promove o seu desenvolvimento social e familiar, mas, acima de tudo, pessoal. Ser um trabalhador(a) é uma condição valorizada em nossa sociedade. O homem passa a ter um valor por aquilo que faz e produz, mas quando o mesmo é incapacitado de trabalhar, torna-se um fardo para seus pares e, como consequência, para si mesmo. 
Para o portador de distúrbio psicológico, o problema é ainda maior, uma vez que este já se encontra excluído socialmente. Ele passa, então, a desacreditar de si mesmo e de suas capacidades de produção. Para Arnaldo Alves da Motta, o paciente entra em um processo de “cronificação”... 
...no qual um sintoma vai se configurando de tal forma que, a certa altura, passa a ser um estado sem possibilidade de retorno. O crônico é “um sem esperança” para quem não existe qualquer perspectiva restauradora. O seu estado é de alguém que perambula através da repetição inercial, desconectada de significado (1997, p. 55/56).
Dentro deste processo de cronificação, as capacidades de produção dos pacientes tornam-se nulas: sem conseguirem se expressar, caminham pelos cantos do CAPS I repetidamente, até que o corpo se canse, não encontrando sentido para participarem das oficinas, refugiando-se, cada vez mais, nos remédios.        
Abaixo temos uma tabela retirada do portal do Ministério da Saúde , divulgada em 2010, onde apresenta, em números, as iniciativas de Inclusão Social pelo Trabalho:
A parceria entre os ministérios da Saúde e do Trabalho e Emprego (Secretaria Nacional de Economia Solidária) permitiu a criação de uma política de incentivo técnico e financeiro para as iniciativas de inclusão social pelo trabalho. A Coordenação Nacional de Saúde Mental utiliza o Cadastro Nacional das Iniciativas de Inclusão Social pelo Trabalho (CIST) para mapear as experiências de geração de trabalho e renda no campo da saúde mental, que já são 393. Este cadastro é um importante instrumento para a construção de uma rede de apoio às iniciativas (BRASIL, 2010, p. 21) .


Em nosso país, “23 milhões de pessoas (12% da população) necessitam de algum atendimento em saúde mental.” (LOURENÇO, 2010, s/p).  Sendo assim, temos um total de 393 iniciativas de inclusão social pelo trabalho para 23 milhões de brasileiros com transtornos mentais. Um número muito pequeno de iniciativas que não conseguem atender ao público supracitado.    
A falta de oportunidade de inserção dos pacientes do CAPS I no mercado de trabalho foi perceptível durante toda minha trajetória de estágio. Eu procurava conhecer, ao máximo, os pacientes que se aproximavam e, no geral, a única atividade que exerciam eram as oficinas terapêuticas e, ainda assim, suas produções não geravam um retorno financeiro e nem ficavam de posse de quem as confeccionavam.          
Para Michel Foucault, o “louco” incapaz de exercer trabalho, acarreta um problema social:
A partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho. Esta comunidade adquire um poder ético de divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, todas as formas da inutilidade social (1978, p. 83/84).
Como já discutido neste relato, o sujeito ocioso, que não produz e, consequentemente, não consome, torna-se inútil para a sociedade. Socialmente, o “louco” é visto como incapaz de raciocinar, de se comunicar e de exercer trabalho, produção de capital e sustentabilidade, tornando-se um fardo para a sociedade capitalista. O que lhe resta é a internação, que para Foucault:
[...] é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade (1978, p. 89).
Neste caso, penso que existe uma visão pré-estabelecida da sociedade em relação ao portador de distúrbio psicológico. Sem capacidade de produção e condição para consumo, ele é destinado apenas ao convívio familiar ou aos serviços de Saúde Mental que, muitas vezes, apresentam-se como seu exclusivo meio de socialização com outras pessoas.       
As iniciativas de inclusão para o trabalho existem, mas ainda são poucas, levando em consideração o grande número de pessoas com transtornos mentais. É certo que um portador de transtorno mental possui suas limitações, mas há de se considerar a oportunidade de trabalho e de produção como uma contribuição na busca de sua autonomia e, em alguns casos, de sua recuperação. A inclusão social só será alcançada quando os mesmos passarem a conviver socialmente.     
Finalizo esse assunto com as palavras do paciente J. que desenhou um coração chorando. Perguntei-lhe o que representava e me respondeu:
Meu coração está assim, triste, chorando, pois eu não posso fazer nada. Eu apenas venho ao CAPS e depois fico trancado dentro do quarto. A vida é injusta, Alan. Você não acha?
4. EQUILÍBRIO FAVORÁVELA palavra cura tem o significado de cuidar, e é baseada na abordagem que conceituo aqui como um longo caminho de transformação, uma busca constante do indivíduo na ampliação de sua consciência.
Selma Ciornai.
Um paciente novo se aproximou curioso com a presença de pessoas novas dentro do CAPS I. W., 20 anos, simpático, arrumando o seu cigarro, nos contou algumas histórias de sua vida e reclamou com a funcionária: Esses remédios seus que vocês tão me dando aí tão me baqueando demais. Nem sinto o meu corpo.       
Reclamação a respeito dos efeitos dos remédios não veio apenas desse paciente, mas da maioria com os que eu estive em contato, o que me gerou certa preocupação sobre a medicação. Evidencia-se a forma metódica como os pacientes se relacionam com os remédios, procurando tomá-los nas horas corretas. É interessante notar como eles se policiam e policiam os outros, perguntando: Já tomou seu remédio hoje?       
Perguntei ao enfermeiro do CAPS I como funciona a distribuição de medicamentos para os pacientes. Ele me disse que,
Inicialmente, nós dividimos os remédios de cada usuário. Geralmente eles se medicam com diversos comprimidos diferentes, de acordo com o seu prontuário. Separamos os medicamentos por manhã, tarde e noite, em saquinhos diferentes, etiquetados com os nomes e o horário para ser ingerido. Na parte da manhã e da tarde eles se medicam aqui mesmo, caso estejam no CAPS, mas a medicação noturna é feita em casa.
Questionei-me, então, sobre qual a importância desses medicamentos. De acordo com o enfermeiro:
É para controlar os pacientes, para que eles não entrem em crise. Estabilizá-los, até que diminua a dosagem e a quantidade de remédios, mas isso varia bastante de paciente para paciente, pois em alguns é difícil conseguir essa diminuição. Tem paciente que toma de quinze ou mais remédios, mas muitos desses medicamentos são para diminuir o efeito colateral de outros. Vários pacientes ficam sonolentos, alguns babando, então é preciso diminuir esses efeitos com outros remédios, até conseguir um equilíbrio favorável.
Percebi ser difícil alcançar esse “equilíbrio favorável”. Para mim, parece que a medicação toma uma proporção enorme, como um efeito “bola de neve”, onde o paciente é submetido a diversas medicações, uma após a outra, sempre em busca de um equilíbrio, que parece estar cada vez mais fora de seu alcance.         
O que observo referente à medicação é que os pacientes acreditam necessitar delas para estarem calmos e tranquilos durante o passar do dia e, talvez, eles realmente precisem. Porém, o que mais me chamou a atenção é a forma como a medicação os impossibilita de agir, pensar, criar e se expressar. A sonolência é grande, como o caso de uma paciente que dorme pelos cantos do CAPS I ao invés de participar das atividades na oficina terapêutica. A comunicação também é escassa, uma vez em que eles se encontram com os sentidos profundamente alterados pelas drogas.
Para Nise da Silveira, médica psiquiátrica fundadora da Casa das Palmeiras para o tratamento de doentes psiquiátricos fora de manicômios, pacientes que são submetidos a drogas:
Queixam-se de entorpecimento das funções psíquicas, dificuldade de tomar decisões, sonolência permanente. Verificamos nos doentes submetidos a neurolépticos , nos diferentes setores de atividade da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, redução ou perda total da capacidade criativa (1992, p. 13).
Observei pacientes com os efeitos da medicação durante as oficinas terapêuticas. Seu desenvolvimento para a criação é bastante lenta, assim como o seu corpo, sempre com gestos lentos e imprecisos. A comunicação verbal se extingue e traços, aparentemente sem sentidos, são esboçados no papel.
5. A OFICINA TERAPÊUTICAO desenho é como o vivo da pintura: o mais movimentado, o mais fugaz, o mais furtivo, o mais mortal. Se avança sem maquete, sem esboço, sem projeto. Prestando uma grande atenção às posições do corpo imerso no espaço onde ele vem se debater, falar por gestos.
Valère Novarina.
Durante uma oficina terapêutica fiz minha segunda amiga poeta. Dona N. 41 anos, nos disse que adora as oficinas, pois se não teria que ficar em casa, depressiva. E diz também que adora poesia, que tem um caderno cheio em sua casa e que trará semana que vem para me mostrar, e escreve, com uma caligrafia cuidadosa, versos em meu caderno:
Te amei no passado
Te amo no presente
E se o futuro permitir
Te amarei eternamente.
As pessoas são como as estrelas,
Não vemos toda hora
Mas sabemos o quanto elas são importantes
Na nossa vida.
Pessoas como você
São difíceis de encontrar
Fáceis de gostar
E impossíveis de esquecer.
Dona N. confessou-me que se refugia na escrita de seus poemas, para mais fácil meio de expressão: Aquilo que eu não consigo falar, eu escrevo, e finalizou nossa conversa me dizendo que: O amor a gente não rouba e a gente não empresta. A gente conquista.      
Por detrás das portas do CAPS I, diversos são os pacientes que ficam anos sem conseguirem se comunicar inteligivelmente através da fala, e se deparar com pacientes como N., que conversa e escreve o tempo todo, é quase raro. Para aqueles que não conseguem se expressar verbalmente temos o universo das artes para atuarem como mediadores na comunicação entre o consciente e o inconsciente. De acordo com o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, durante um processo de criação artística:
Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. Mesmo contra a sua vontade, tem de reconhecer que nisso tudo é sempre o seu “si-mesmo” que fala, que é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma (1985, p. 61-62).
Por meio do “diálogo” que estabeleci com diversos pacientes durante as oficinas, momentos de lazer e pelos corredores, reconheço serem verdadeiras as falas de Jung. Por vezes, nos comunicávamos através do silêncio, e esse diálogo supracitado refere-se ao contato visual, gestual e da expressão facial de cada um, que foi mais perceptível durante as oficinas terapêuticas, nos momentos individuais de criação dos pacientes.
Foi interessante notar que, muitos dos pacientes que nada falavam antes das oficinas, ao desenhar ou pintar, começavam, aos poucos, a se expressarem, contarem histórias ou apenas sorrirem. Pareceu-me que, no ato de criar, uma porta trancada abria-se para cada um, onde alguns não hesitavam em passar por ela, e outros, com cautela, iam atravessando-a, nos revelando e “anunciando abertamente aquilo que ele nunca teria coragem de falar.” (JUNG, 1985, p. 61-62).

Todos os pacientes buscam produzir algo durante as oficinas, que são sempre coordenadas pelas monitoras, atentas e sorridentes. A monitora disse-me que é muito difícil um paciente conseguir se concentrar de fato em algo, seja durante a oficina de produção de fuxico/pintura, seja na exibição de um filme. Geralmente eles saem para ir ao banheiro, ir beber água, tomar remédio, ou simplesmente levantar e andar um pouco.     
Alguns pacientes interagem entre si e brincam, outros no seu canto, desenhando sozinhos com seus materiais. Foi o caso de C. que nos exibia, orgulhosa, seus desenhos e seus lápis. Ela diz que fará um desenho meu e me pede para ficar parado de frente para ela. Os traços no papel começam a ser criados, e logo, um retrato meu é exibido com muito orgulho.
Disse a usuária: Acho que a polícia deveria me contratar para desenhar os bandidos. Eu até mandei um desenho para eles uma vez, mas eu acho que eles jogaram fora. E foi então que ela nos presenteou com uma nova poesia, que fala sobre a sua percepção e vivência dentro do CAPS I:
Num Lugar Secreto
O lugar onde recebo tratamento é clínica
Aqui quando sento na grama me pinica
As formigas que andam na grama
Trabalham enquanto alguém se ama.
A clínica psiquiátrica há muito me abriga
Têm gente que com os outros muito briga
A pessoa quando vê luz acesa desliga
E que parece que quase não liga.
Com os pacientes do CAPS todo dia fico
E gosto de ver o outro rir e pagar mico
Aqui há árvores e muita gente junta
Que têm muito problema e pergunta.
Venho aqui todos os dias onde estou
E passear na rua São José vou
Muita alegria uma pessoa para mim passou
O homem que trabalhava se cansou.

Podemos perceber que o poema acima refere-se ao CAPS I e a visão que C. possui deste lugar, onde recebe o tratamento, evidenciado logo no primeiro verso. O poema possui quatro estrofes, e a primeira frase de cada estrofe refere-se diretamente ao CAPS I e vai desdobrando-se para outros lugares e impressões.        
Na segunda e terceira estrofe, C. refere-se aos outros pacientes da clínica e a forma como ela se relaciona com eles, sendo perceptível que ela é bastante observadora e, por vezes, individualista. Durante o estágio, pude perceber que C. pouco conversa com os outros pacientes, às vezes se sente incomodada com a aproximação deles, mas sentada na grama, os observa com cautela, achando graça das situações.       
Vejo que a paciente refugia-se em sua escrita e se sente valorizada ao demonstrar para as outras pessoas que consegue fazer poemas. Sempre com o caderno e a caneta em mãos, vai caminhando pelas salas do CAPS I, por vezes parando uma pessoa ou outra e dedicando-lhe um poema. Acredito que isto possa estabelecer uma relação mais íntima entre a paciente e o outro, ao qual ela se propõe a escrever, revelando suas impressões de determinados locais e situações, seus anseios e desejos, aproximando-nos de sua realidade pessoal.          
Não se envolver com os pacientes é difícil. Eles têm necessidade de se aproximarem, conversarem, contarem histórias e receberem atenção e nós temos desejo em conhecê-los, escutá-los, enfim, de tornar essa troca possível. Exibem-nos a sua criação com brilho nos olhos e assim vai se construindo a afetividade, o que para eles é muito precário na sociedade em que estamos habituados a viver e, quando construída, é de extrema importância.    
As monitoras de oficinas terapêuticas separam os trabalhos por pastas. Cada paciente possui uma, onde contém todos os trabalhos criados em papel. Quando tratam-se das pinturas em telas, elas ficam, ou afixadas nas paredes do CAPS I, ou enfileiradas nas estantes. A monitora mostrou-me alguns trabalhos produzidos dentro das oficinas. Impressionado com algumas criações, perguntei-lhe se os médicos psiquiatras que trabalham lá faziam alguma análise, relacionando-as com o seu criador. Ela, com uma expressão nítida de decepção, respondeu que não. E além de as obras não serem analisadas, os pacientes não podem levá-las para casa.      
Em conversa, a monitora disse-me que não existe uma organização do CAPS I para a construção de um acervo ou exposição dessas criações. Por sua vez, essas se estagnam nas estantes durante anos, acumulando e mofando, estragando ao ponto de tornarem-se indecifráveis, impossibilitando a leitura da forma mais íntima de comunicação de um paciente com transtorno mental: a arte.        
De acordo com as idéias da arteterapeuta Maria Cristina Urrutigaray, o fazer artístico pode demonstrar concretamente o que se envolve internamente em um paciente:
A arte se converte em um elemento facilitador ao acesso do universo imaginário e simbólico, permitindo o desenvolvimento de potencialidades latentes ou rituais, bem como o conhecimento de si mesmo. Ao trabalhar com materiais plásticos o indivíduo tem a possibilidade de criar uma nova forma a partir de uma forma original. Materiais como argila, lápis, tinta, papel, etc, realizam por um lado a execução prática de uma idéia (fantasia, sentimento, conflito, etc.) como exercitam a inteligência ao dar uma nova configuração a um modo particular de ser (2004, p. 28).
Portanto, por meio do fazer artístico, o paciente passa a se conhecer mais intimamente e transfere para a obra artística o seu universo imaginário e simbólico. Desta forma, percebemos que a arte pode ser um caminho eficaz para que consigamos compreender as necessidades e conflitos em um paciente portador de transtorno mental, uma vez que ela nos possibilita conhecê-los mais intimamente. 
Abandonar essas obras é abandonar o paciente, pois essas atividades de expressão, como parte integrante dos tratamentos terapêuticos, auxiliam no desenvolvimento dos envolvidos em sua produção, auxiliando, também, médicos, enfermeiros e monitoras na aproximação da afetiva dos pacientes. Como diz Nise da Silveira, “a tarefa do terapeuta será estabelecer conexões entre as imagens emergentes do inconsciente e a situação emocional que está sendo vivida pelo indivíduo.” (s/a, p. 6).         
Nise da Silveira buscava extinguir o conceito hospitalar fundamentado na constante medicação a fim de conseguir um “controle” mental dos pacientes, dedicando-se à busca de uma maneira aonde o esquizofrênico pudesse expressar-se de forma livre e comunicar-se, já que, muitas vezes, esses pacientes privavam-se da comunicação verbal. Nise criou, então, ateliês de pintura, modelagem, costura e bordado. Acreditando ser essa a melhor forma do terapeuta se conectar com o paciente, decifrando e analisando suas manifestações artísticas com a sua realidade, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, no Rio de Janeiro. As obras criadas nas Oficinas de Terapia Ocupacional iam direto para as paredes do museu, como forma de acervo e pesquisa.       
Centenas de trabalhos são criados dentro das oficinas terapêuticas, sendo a maioria de desenho e pintura. No meio desses trabalhos, é interessante observar as pinturas de alguns pacientes, como por exemplo, a do paciente J. Quando este entrou no CAPS I, a única imagem que conseguia reproduzir era a de símbolos circulares.
Segundo Jung citado por Nise da Silveira, símbolos circulares representam unidade e ordem. É uma tentativa de auto-cura inconsciente referente à desordem psicológica do paciente onde “o molde rigoroso imposto pela imagem circular [...] compensa a desordem e confusão do estado psíquico.” (SILVEIRA, 1987, p. 32).     
No decorrer de seu tratamento no CAPS I, constatou-se que o paciente J., aos poucos, deixou de fazer símbolos circulares e passou a desenhar fortes riscos. De acordo com a Psiquiatria Clássica, as pinturas dos esquizofrênicos estariam voltadas para a abstração e o geometrismo, não havendo, quase sempre, formas orgânicas. Essas formas de representação foram explicadas como uma forma de regressão e de dissolução da realidade. Para Jung, demonstrariam o mais íntimo estado de caos da psique, uma vez que “as camadas mais profundas da psique perdem sua singularidade individual à medida que mergulham na escuridão.” (JUNG, 1964, p. 265).
6. CONSTRUINDO RELAÇÕESA relação entre os pacientes do CAPS I deu-se de uma forma bastante variada. A maioria não conversava, ou quando tentavam, soltavam apenas algumas palavras e depois retornavam para seus pensamentos. Outros pacientes dormiam, enquanto alguns ficavam sozinhos pelos cantos. Por outro lado, existiram aqueles que conversavam entre si quase todo o tempo. Os assuntos entre eles geralmente estavam em torno da família, dos filhos, da casa e sobre os remédios.       
Dona E. estava um pouco introspectiva. A psicóloga me disse que ela quase brigou com uma paciente. Indaguei E. sobre o acontecido e ela, revoltada, relatou:
Ah, eu pedi para a metida da garota chegar para o lado para eu poder sentar e ela me disse para eu ir procurar outro lugar, pois ali já estava cheio. Ela foi grossa comigo.
Perguntei para a monitora de práticas terapêuticas como os pacientes se relacionavam entre si. Eis a resposta:
Sempre acontecem brigas e discussões. Nós, monitores, procuramos não interromper de imediato quando algo acontece, pois eles, geralmente, conseguem resolver o conflito. Aqui é como uma escola, hoje eles estão brigados, mas amanhã tornam-se os melhores amigos. É positivo estabelecer uma rotina com os pacientes, pois assim eles se disciplinam mais facilmente, mesmo que muitos possuam uma grande dificuldade de organizar seus horários e seus afazeres.
Observei em alguns pacientes a forma como eles cuidam e preservam seus objetos pessoais. Dentro do CAPS I é tudo bastante precário, seja na alimentação, seja no material destinado às oficinas, assim como os pertences dos próprios pacientes. Segundo a terapeuta, a maioria chega ao serviço sem objetos básicos de higiene, como escova de dente, e os familiares, em quase todos os casos, não dão o auxílio necessário para a manutenção.
Constatei, então, que eles têm dificuldades em emprestar para os outros pacientes os seus poucos pertences. Ouvi deles frases como: Esse cara toda hora quer um cigarro da gente. Quem quer tem que comprar o seu. Se bem que eu faço a mesma coisa, mas não é sempre. E também: As pessoas pedem o meu celular emprestado, mas eu não empresto. Um terceiro exemplo: Eu não empresto meus lápis e minhas canetinhas, se não eles usam de qualquer jeito e acabam estragando.           
A relação estabelecida entre os pacientes e seus monitores foi pacífica e colaborativa. O CAPS I possuía duas monitoras de Práticas Terapêuticas que estiveram sempre com os pacientes, de manhã até o fim da tarde. Nem todos os pacientes lá presentes compareciam às oficinas, alguns apenas iam se consultar com os médicos ou tomar os seus remédios. Mas existiram pacientes fiéis às oficinas, como a que me disse, enquanto desenhava:
Eu adoro estar aqui, pintando, desenhando, fazendo alguma coisa, pois se não eu estaria em casa, sem ter o que fazer, pensando na vida, me deprimindo. Quando eu venho pra cá eu fico muito mais feliz.
O papel das monitoras é tomar conta de tudo: trazer e cuidar dos materiais que serão utilizados, dos cuidados necessários para cada paciente, de saber se eles estão bem ou precisando de alguma coisa, do horário do café da tarde e para os imprevistos que podem ocorrer.
Segundo a monitora de Práticas Terapêuticas, essa relação entre o paciente e o monitor pode ser um pouco complicada. Eis alguns de seus comentários:
A gente sempre acha que haverá um respaldo técnico de como se posicionar diante dos pacientes, de como conversar, sobre o que se pode conversar, o que não se pode falar, até mesmo sobre o que vestir adequadamente. Todas essas coisas passaram pela minha cabeça antes de estar aqui, mas quando você chega, a realidade é muito diferente. Os profissionais estão absorvidos com as suas coisas, nos seus atendimentos, então esse respaldo não nos é dado e você vai aprendendo com o paciente a forma de criar essa relação. Você acaba aprendendo errando, pois em algum momento faz-se um comentário pequeno, que você acha ser ínfimo, mas para o paciente acaba tomando uma proporção enorme. Eu acho que a melhor forma de lidar com o paciente é na mesma proporção que eles lidam com você, que é muito particular. Você vai aprendendo na particularidade de cada um como você irá vivenciar o dia a dia com ele. Se um é mais extrovertido, você também será mais extrovertido, se um é mais fechado, você será mais fechado, se um te abraça, você também abraça, e vai assim, nessa relação.
 Quando iniciei meu estágio de observação no CAPS I, passei pelas mesmas dúvidas referidas pela monitora. Houve, inicialmente, uma entrevista entre os estagiários, a terapeuta ocupacional e as duas monitoras. Nessa entrevista, nos foi informado sobre a conduta de alguns pacientes e que deveríamos nos atentar em seus dias de crises.  Mas a nossa convivência foi sendo estabelecida aos poucos, pelo dia a dia e por meio do diálogo. Nem sempre um paciente irá te tratar da mesma forma como te tratou no dia anterior. Percebi que quando eles entram em crise, podem demorar semanas ou meses para se recuperarem novamente, tornando a relação com os profissionais e os outros pacientes mais frágeis. No meu caso, como apenas um observador, foi preciso então, distanciar-me, mas estar presente quando o paciente necessitava de algum apoio, como uma simples conversa.   
Segundo a monitora, os profissionais acreditam ser o distanciamento desses pacientes a melhor forma de interação, pois eles reagem de uma forma muito extrema: ou será positivo ou negativo.
Mas não é assim que eu percebo, no dia a dia. Lógico que tem dia que você chega, eles te abraçam, como tem dias que eles passam por você e nem te cumprimentam. Isso é normal. Eu não leio os prontuários deles para saber que tipo de doença eles tem, pois eu quero lidar com eles enquanto pessoas, porém eu não ajo como se eles estivessem todos bem. Você precisa estar sempre atento com o que você faz e o que você diz.
A atenção e o cuidado, com o que você fala ou faz, devem estar presentes a partir do momento em que se adentra o CAPS I. A relação deve ser estabelecida de acordo com a receptividade de cada paciente, e ainda assim são muito variáveis, como os próprios pacientes, que variam seu emocional dependendo do dia, da medicação ou do tratamento que recebe.
Em meu primeiro dia no Serviço de Saúde Mental, C. me disse uma coisa que eu jamais pude esquecer: Vocês são inteligentes e me ensinaram muitas coisas hoje. Fizeram-me muito bem, assim como eu ensinei para vocês também. É uma troca. E agora, percebo o valor precioso que se tornou essa troca, para mim, como pessoa, estagiário e arte/educador, e para eles, meus amigos do CAPS I.
7. CONSIDERAÇÕES FINAISObservei que o fazer artístico vem a ser um importante meio de manifestação para pessoas que, muitas vezes, não conseguem expressar sentimentos e conflitos por meio de palavras. Neste caso, segundo Nise da Silveira:
Será preciso partir do nível não-verbal. É aí que se insere com maior oportunidade a terapêutica ocupacional, oferecendo atividades que permitam a expressão de vivências não verbalizáveis por aquele que se acha mergulhado na profundeza do inconsciente, isto é, no mundo arcaico de pensamentos, emoções e impulsos fora do alcance das elaborações da razão e da palavra (1992, p. 16/17).
Este foi o caso dos pacientes do CAPS I de Ouro Preto durante as oficinas terapêuticas, onde as artes, por meio do desenho, da pintura, escrita, entre outras formas de manifestação, serviram como meio de comunicação e, também, como uma forma de recuperação terapêutica de crises e conflitos que os fizeram perder, outrora, a razão. Como constata Nise da Silveira:
O trabalho no atelier revela que a pintura não só proporciona esclarecimentos para compreensão do processo psicótico, mas constitui igualmente verdadeiro agente terapêutico. [...] As imagens do inconsciente objetivadas na pintura tornam-se passíveis de uma certa forma de trato [...] retendo sobre cartolinas fragmentos do drama que está vivenciando desordenadamente, o indivíduo dá forma a suas emoções, despotencializa figuras ameaçadoras (1992, p. 18).
Estes pacientes, por não conseguirem se expressar verbalmente de maneira inteligível, criaram artisticamente formas e cores para suas inquietações, possibilitando compreensão para estes conflitos. A arte transformou-se em uma ponte que ligou o paciente de distúrbio mental ao outro, possibilitando uma comunicação sensível, revelando o mais íntimo do ser e permitindo a troca de experiências, vivências e afetividades, contribuindo favoravelmente para a recuperação destes pacientes.       
O contato com cada paciente pareceu-me muito sincero e delicado, sempre com um cuidado maior com o que eu iria dizer ou perguntar. Mas o interessante é que eu não precisava ir até os pacientes para conhecê-los, ao contrário, eles vinham até mim com a intenção de me conhecerem e de que eu os conhecesse.
Construímos, a cada dia, uma relação embasada no respeito e no afeto, e é esta relação construída que eu levo como fruto maior de meu estágio. Por certo, somos pessoas diferentes, com personalidades e visões de mundo distintas, mas as expressões de nossas personalidades e de nossas visões pessoais se manifestam de formas similares: por meio do fazer artístico, da escrita, do bordado, da pintura, do canto, do rabisco.
essas manifestações que revelam ao outro e a nós mesmos o nosso interior mais íntimo e profundo, que no caso destes pacientes em particular, eram visíveis nas paredes dos corredores e das diversas salas do CAPS I: a humanidade retratada em óleo sobre tela.

Notas:
 i Permanência dos pacientes pelo período da manhã e tarde, com internação e Oficinas Terapêuticas.
 iiPara melhor compreensão do leitor, no decorrer do texto, todos os relatos de pacientes e/ou funcionários estarão sublinhados para se diferenciarem do restante dos textos e citações.
 iiiConhecido popularmente como um remédio para todos os males.
 ivFlores de retalhos e/ou tecidos.
 vDe acordo com a Mitologia Grega, as Moiras eram três irmãs responsáveis por fabricar, tecer e decidir o destino de todas as pessoas.
 viNo decorrer do relatório, busquei referir-me as pessoas que utilizam os serviços oferecidos pelo CAPS I como pacientes e/ou usuários.
 viiPaciente do CAPS I em maio de 2010.
  www.saude.gov.br.
  http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/smdados.pdf.
 http://saude.ig.com.br/transtornos+mentais+atingem+23+milhoes+de+pessoas+no+brasil/n1237686  125917.html.
viii  Resposta dada no CAPS, em abril de 2010.
  Idem.
 ixMedicamentos inibidores das funções psicomotoras.
 x Resposta dada no CAPS, em abril de 2010.
 xi Idem.
 xiiIdem.
Bibliografia
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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URRUTIGARAY, Maria Crisitna. Arteterapia – A transformação pessoal pelas imagens. Rio de Janeiro. Wak, 2004.
Publicado em 26/09/2012
Currículo(s) do(s) autor(es)
Alan Villela Barroso - (clique no nome para enviar um e-mail ao autor) - Atualmente é licenciando em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professor de Artes da Associação do Grupo da Terceira Idade - AGTI e do Centro Educacional Mundo Mágico. Bolsista voluntário do programa de iniciação científica da UFOP com a pesquisa em andamento: "Teatro e Letramento na Educação de Crianças: limites e limiares de uma proposta interdisciplinar". Tem experiência na área de Artes, com ênfase em pedagogia do teatro, letramento e educação infantil, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, letramento e arte-educação.Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4403428095035317


Fonte: http://www.psicopedagogia.com.br/new1_artigo.asp?entrID=1521#.VNoEOyvF_YA

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